Sua aparição no plenário da Câmara dos Deputados para tomar posse foi um acontecimento.
Enquanto colegas homens se distraíam do que ocorria à sua volta e na Mesa Diretora contemplando as pernas da jovem, que escorregavam para fora de um mini-vestido azul, ou perdendo-se na vastidão de seu decote, a deputada Victoria Donda ouvia ofensas e gritos partidos das galerias, onde se alojavam militantes da agressiva organização juvenil Cámpora, ligada à presidente Cristina Kirchner, cujo insulto mais publicável foi “Cadela!”
Victoria Donda, miúda e atraente deputada em segundo mandato, ex-kirchnerista, hoje na oposicionista Frente Ampla Progressista (FAP), é antiga militante pelos direitos humanos e carrega uma história pessoal pavorosa: foi a primeira pessoa, na Argentina, a descobrir, em 2003, que era filha de desaparecidos durante a ditadura militar (1976-1983).
Pior que isso: soube, aos 26 anos de idade, que nasceu num conhecido centro de tortura e morte de adversários do regime, a Escola Mecânica da Armada (ESMA), hoje um museu da memória e um centro de direitos humanos, e que seu pai adotivo, a quem sempre amou, não apenas participou ativamente de sequestros, torturas e assassinatos durante o regime mas foi quem a recebeu, ainda bebê, das mãos dos militares responsáveis pelo sumiço dos pais verdadeiros.
Mesmo com essa trajetória trágica, mas também corajosa – ela abomina a ditadura mas ainda hoje visita o pai adotivo na cadeia, onde cumpre pena de prisão perpétua –, seus trajes e seu comportamento tornaram-na, agora, mais conhecida como “depu-sexy”. Nos programas populares de TV, nas revistas de fofoca, nas ruas, ela é a deputada sexy.
“Decidi ser autêntica”, explicou Victoria depois do ocorrido na posse. “Sempre usei decote e sempre tive as curvas que tenho e que ganhei da natureza. Por que deveria disfarçar-me em alguém que não sou?”
Sorridente e exuberante, a vida de Victoria, que até a idade adulta imaginava ser Analia Azic, poderia tê-la tornado fechada, amarga, deprimida. Seu pai adotivo, o oficial aposentado da Guarda Costeira Juan Antonio Azic, à época dono de uma mercearia, tentou suicidar-se com um tiro na boca quando se divulgou na TV, nesse 2003, que fora criminoso durante a ditadura.
Sobreviveu por milagre, mas ficou inteiramente desfigurado. Sua mãe adotiva, Esther Abrego, dona de casa, que nunca soube a origem espúria de Victoria, e com quem ela continuou a se dar bem, morreu há dois anos.
Victoria foi recolhendo aos poucos os detalhes sobre o fim horroroso dos pais verdadeiros com a ajuda de organizações de direitos humanos como as das Mães e das Avós da Praça de Maio e outras entidades ligadas a desaparecidos políticos.
Espantada com o que começou a saber, precisou de um ano para decidir-se a fazer o teste DNA que comprovou a verdade. A mãe, a universitária Maria Hilda Pérez, sumiu para sempre depois de detida, grávida, em 1977. O pai, também estudante, José Maria Donda, teve o destino de muitos presos políticos – o de ser arremessado, dopado mas vivo, de um avião Fokker sobre o Rio da Prata.
Como se tudo isso não bastasse, Victoria descobriu que quem denunciou o casal e colaborou com sua prisão foi um irmão do pai, Adolfo Donda, então oficial da Marinha – e, portanto, seu tio.
Essa trajetória, e uma década de trabalho em comunidades pobres e como militante pelos direitos humanos acabaram sendo sobrepostas em algum grau pela questão de como ela se apresenta, se veste e se comporta.
Na moralista Argentina oficial, simples fotos de férias colocadas no Facebook da deputada, como uma em que aparece com um biquíni que, exceto pela parte superor, talvez fosse até considerado recatado, causaram polêmica.
Até mesmo uma foto em que a deputada, à vontade mas inteiramente composta, aparece num passeio às Cataratas do Iguaçu, rendeu espaço em jornais, revistas e sites.
A combativa Victoria, porém, não se entrega. “Vou continuar me vestindo como quiser, apesar dos misóginos [“que ou quem tem aversão às mulheres”, diz o dicionário Aurélio]. Eles não me farão recuar de minhas ideias nem do meu trabalho”.
De fato, não. No exato momento em que deveria prestar juramento começou a ser intensamente vaiada pela tropa de choque kirchnerista, enquanto a deputada que conduzia a sessão pedia ordem e silêncio. Ela acompanhou colegas no juramento de praxe mas, depois, acrescentou: “Juro pela memória das vítimas da violência institucional”.
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