Isaura passa os dias lendo e falando sobre a Bíblia
De lenço branco na cabeça, uma inusitada passageira a chama atenção
de quem passa pelo aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre. Se não
fosse pelos cartazes coloridos que carrega ou pela reza em voz alta a
ecoar pelos corredores, seria ainda perceptível pela simplicidade que
traz no olhar delicadamente azul.
Isaura Lopes, 79 anos, está há duas décadas peregrinando pelas
capitais brasileiras em jornadas cristãs que duram 20 dias. Com ajuda de
passageiros e aposentadoria, compra as passagens e se fixa em terminais
fazendo de assentos, banheiros e restaurantes móveis e cômodos de sua
própria casa. É como se fosse um lar concedido por Deus e não
questionado pela Infraero. A estatal vê Isaura como uma viajante comum,
com bilhete de partida comprado.
Desde
5 de outubro, passa os dias lendo a Bíblia, orando por passageiros e
conquistando funcionários do maior aeroporto do Estado. De longe, há
quem fotografe a senhora que se veste como se fosse uma freira.
Mas
somente aqueles que param ao seu lado compreendem o que a carteira de
identidade, o CPF, o título de eleitor e os bilhetes do próximo destino —
os únicos documentos que carrega na bagagem — não revelam.
Isaura já se julgou amaldiçoada. Não conquistava seus principais
desejos enquanto jovem e se revoltava sem entender o porquê. Então ouviu
de Deus que sua vida não era terrena. Se tinha os pés no chão, sua alma
estava no céu. Por isso voa, sem medo de altura.
Ela não tem família. Nasceu no sertão pernambucano onde completou o
primeiro grau, noivou e preparou todo o enxoval. E onde abandonou tudo
para seguir em uma eterna viagem pelo Brasil. Em nome de Deus, deixou o
sonho de ser mãe. E não se arrepende.
Isaura tem apenas uma kitnet alugada em Valparaíso-GO, mas nem lá se
sente em casa. Está tão acostumada com os aeroportos que quando dorme na
própria cama sente dores nas costas. Para ela, o conforto é se espalhar
por um assento de 1m², mas cuidadosamente higienizado com lenços de
papel e álcool gel. Ela não ouve. Começou a perder a audição aos 38
anos.
— Orava muito para não ficar surda. Um dia, ouvi de Deus: Isaura, os
sons da terra são muito desafinados com os sons celestiais, melhor é não
ouvir — explica a velhinha.
Isaura conjuga verbos e pronomes possessivos na segunda pessoa do
plural. É porque apesar de estar, não se sente sozinha. Toda sua vida é
uma obra conjunta. Na assinatura, está Isaura. E seu amigo número 1,
Deus. Ela fala alto, coloca palavras difíceis em seu discurso. Tem
sempre um papel a mão para que as pessoas possam lhe perguntar o que bem
entenderem. A resposta será invariavelmente finalizada com uma longa e
cativante risada.
Isaura vai deixar saudade quando partir para o novo destino
É por isso que, quando partir, Isaura fará falta a companhias como a
auxiliar administrativa que recebia calorosos cumprimentos ao chegar no
trabalho ou a responsável pela limpeza do Salgado Filho que —
esquecendo-se da surdez — cuidava para não bater a vassoura contra o
banco em que a senhora dormia.
Tinha medo de despertá-la daquele
profundo sono, de uma média de quatro horas duvidosamente confortáveis.
Revigorantes, para Isaura.
Quando o sol se despedir, no fim da tarde desta quinta-feira, Isaura
embarcará com ele. O destino é Brasília — aeroporto que escolheu como
base. Reunirá as duas malas onde guarda poucas mudas de roupa, papeis e
canetas para confeccionar cartazes e algumas bíblias.
Deixará em solo gaúcho apenas a boa lembrança. E a frase que insistentemente permanecerá na memória de quem a conheceu:
— Eu sou a velhinha mais feliz do planeta.
A rotina
Banho - As poucas horas em que dorme só são
merecidas após um demorado banho de pano e sabonete, que sempre acontece
durante a madrugada para não incomodar ninguém. O cabelo, já curto para
não atrapalhar, é lavado na pia com a ajuda de um copo plástico.
Sono - Em Porto Alegre, fez de um dos assentos
próximos à escada rolante, no terceiro piso, a sua cama. Ela posiciona a
bolsa sobre um dos braços do banco, coloca a bíblia em cima e apoia a
cabeça. Para dormir, recolhe os pés desafiando o pequeno espaço
disponível sobre o assento.
Alimentação - Não toma café da manhã, acostumou-se
sem. Mas o que chama de carência alimentar bate por volta das 11h,
quando se dirige a restaurantes onde consegue descontos e, por vezes,
até comida de graça. À noite, é a vez de um pequeno lanche.
Fonte: ZERO HORA
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