A mulher prestou queixa de abuso sexual contra a filha que teve com Carlos Alberto
A história de uma jovem gaúcha agredida, violentada e mantida sob
cárcere privado por 17 anos, em Itaboraí, no Rio, assombrou o Brasil.
Em entrevista a Zero Hora, a jovem de 28 anos, natural de Porto
Alegre, conta detalhes do sequestro, ocorrido em 1995, e da forma como
agia Carlos Alberto Santos Gonçalves, 57 anos, o padrasto que a submeteu
a martírios diários durante quase duas décadas.
A seguir, a história de uma tragédia brasileira:
Zero Hora — Como foi a sua infância?
Jovem — Era uma infância normal. Eu morava com a
minha mãe, na vila Divinéia, em Porto Alegre, até ela se separar do meu
pai. A minha mãe trabalhava numa casa de família e o meu pai tinha um
bar. Éramos eu, a minha irmã, que tinha oito anos, e o meu irmão, na
época com três anos.
ZH — Como a sua mãe conheceu o teu padrasto?
Jovem — Na Vila Divinéia mesmo. Ela foi trabalhar num centro de macumba, na vila, e ele era o marido da filha do dono.
ZH — Quando começaram os primeiros assédios dele?
Jovem — Quando ele já morava com a minha mãe. Ele
começou me alisar, a se roçar. Eu contei para a minha mãe, que não
acreditou em mim. Ele disse para ela, então, que eu estava dando em cima
dele. Nas férias, eu fui para Charqueadas, onde mora a minha vó. No
retorno da escola, eu queria morar com ela, em Charqueadas.
ZH — Como foi o sequestro?
Jovem — No primeiro dia de aula, ele foi me buscar
na escola. Eu não lembro o nome da escola, mas ficava na parada 43 de
Alvorada, pois a gente tinha se mudado para lá quando a minha mãe passou
a morar com ele. Ele me pegou na saída, junto com o filho mais novo
dele, que tinha 10 anos, e disse que iria me levar para a casa da minha
avó. Só que ele me trouxe para o Rio de Janeiro.
ZH — Como vocês foram para o Rio?
Jovem — Fomos de carona num caminhão. A gente passou
a primeira noite em Torres, na divisa com Santa Catarina. Foi lá, num
hotel de beira de estrada, que ele me violentou pela primeira vez.
ZH — O estupro ocorreu na frente do filho dele ou a criança estava em outro quarto?
Jovem — Ele estava no mesmo quarto. Mas acho que não chegou a ver porque estava dormindo.
ZH — Você lembra quanto tempo demorou a viagem?
Jovem — Uns dois dias, eu acho.
ZH — Para onde vocês foram no Rio?
Jovem — Nós ficamos num hotel em Niterói. Ele tinha
uma certidão de nascimento falsa e se apresentava como se fosse meu pai.
Ficamos um mês no hotel. Depois, fomos olhar um sítio para ele
trabalhar de caseiro, em Maricá, uma cidade próxima.
ZH — Os abusos continuaram?
Jovem — Direto. Ele abusava de mim e me espancava. Eu ficava presa
dentro de casa. Ele trabalhou em vários sítios na região, o que
dificultava que eu me aproximasse das pessoas.
ZH — Ele sempre te apresentou para as pessoas como filha?
Jovem — Até eu completar 18 anos, sim.
ZH — Ninguém desconfiava?
Jovem — É que eu nunca tive contato com ninguém. Não tinha amizades,
não conversava, não saía para rua. Tanto que da primeira vez que tentei
fugir fui atropelada. Eu tinha recém chegado no Rio.
ZH — Ficou muito machucada?
Jovem — Me quebrei toda. Cheguei a ficar em coma no hospital.
ZH — Quantos anos você tinha quando nasceu o seu primeiro filho?
Jovem — Eu estava com 13 anos e meio. Hoje ele tem 15 anos.
ZH — E os demais filhos?
Jovem — Depois, com 17 anos, tive uma menina, que hoje tem 10 anos. Com 21 anos, eu tive o último filho. Todos com ele.
ZH — Ele a mantinha amarrada dentro de casa?
Jovem — Amarrada, não. Eu ficava trancada, com os
filhos menores, dentro de casa. Eu era proibida de sair sozinha e de
falar com os vizinhos.
ZH — Você estudava?
Jovem — Estudei só até a terceira série. No Rio, ele
não me deixava estudar. Só fui voltar a estudar com 26 anos. Fiz o
Ensino Fundamental em um ano e meio.
ZH — Ele era violento?
Jovem — Sim, ele me batia, me queimava com charuto, me arranhava. Com frequência eu era humilhada na frente das crianças.
ZH — Ninguém suspeitou que você poderia estar sendo violentada já que teve os três filhos praticamente sem sair de casa?
Jovem — Eu não tinha contato com quase ninguém.
ZH — Os filhos nasceram onde?
Jovem — Em hospitais aqui no Rio. Foram três cesarianas. No primeiro filho, eu pesava 40 quilos. Não tinha forças para nada.
ZH — No hospital, perguntaram quem era o pai?
Jovem — Para mim, não.
ZH — Você fez pré-natal?
Jovem — Na primeira gestação, não. Nem sabia se seria menino ou menina. Só tive algum acompanhamento nas outras duas.
ZH — Como você conseguiu se libertar?
Jovem — Quando eu vim morar em Itaboraí, no final de
2009, a minha filha começou a estudar. Ela começou a fazer aulas de
kung fu. Como era pequena, o pai pediu para eu acompanhá-la. Lá, eu
gostei das aulas e vi uma saída para minha vida. Conversei com o
professor, contei um pouco da minha história, sem dizer tudo, e disse
que gostaria de ter aulas. Ele dava palestrar de como uma mulher deveria
ser tratada por um homem, como funciona uma família de verdade. Eram
coisas que, desde que eu saí da minha casa, jamais tinha ouvido falar.
Eu fui me instruindo. Comecei a conversar com as pessoas, que começaram a
me ajudar. Quando confiei nas pessoas, contei toda a minha história.
ZH — Alguém duvidou?
Jovem — Algumas pessoas disseram que eu podia ter
fugido, essas coisas. Mas como eu vou fugir se não tenho amigos, era
semianalfabeta, não conheço ninguém, tive um filho atrás do outro? Não
tinha saída.
ZH — Quando você conseguiu fugir?
Jovem — Um dos filhos mais velhos dele tentou abusar
da minha filha. Eu fui na delegacia e contei o que estava acontecendo e
criei coragem para falar da minha vida. Era agosto do ano passado. Em
setembro, durante uma briga, eu acabei batendo nele. Na época, eu já
tinha aprendido a lutar e a me defender. Fui para casa de uma conhecida
e, depois, aluguei uma casa.
ZH — O que a polícia fez após a denúncia?
Jovem — Eles começaram a colher provas. Como fazia muito tempo, não tinha testemunhas, estas coisas, eles começaram a investigar.
ZH — Como você se sente agora?
Jovem — Eu me sinto aliviada. Eu não sabia o que iria acontecer na minha vida.
ZH — O que você pensa em fazer no futuro?
Jovem — Seguir a minha vida, com os meus filhos. Bola para frente.
ZH — Como você faz para se sustentar?
Jovem — Sou vendedora autônoma e ganho bolsa família do governo federal.
ZH — Você tem contato com familiares no Estado?
Jovem — Não. Gostaria muito de encontrar a minha avó, mas não sei se ela é viva.
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